Transporte público: Direito do Cidadão e dever do Estado

Poucos sabem que o transporte urbano que transita pelas ruas todos os dias é um Serviço Público delegado do Município ao particular, sendo que este possui a obrigação de prestá-lo de forma eficiente e adequada, cabendo ao Poder Público o dever de fiscalização e de intervenção para que este serviço seja prestado com qualidade.

O inciso V do artigo 30 da Constituição da República Federativa do Brasil assim o prevê:

” Art. 30. Compete aos Municípios:

(…)

V – organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial”

 É Constitucional: o transporte coletivo é um dever do Estado e como tal deve ser prestado com dignidade de forma a atender indistintamente todas as necessidades de deslocamento do cidadão.

Ou seja, um transporte público de qualidade não é um favor do Estado ou das empresas particulares de prestação de serviço. Estado e viações não estão fazendo mais nada que suas obrigações.

Mas na prática, essas obrigações não cumpridas.

O doutrinador Helly Lopes Meireles, em sua obra “Direito Administrativo Brasileiro”, traz, sinteticamente, as obrigações da entidade concessionária para com a coletividade, as quais devem ser objetos de controle pelo Poder Público (pg. 321):

“Os requisitos do Serviço público ou de utilidade pública são sintetizados, modernamente, em cinco princípios que a Administração deve ter sempre presentes, para exigi-los de quem os preste: o princípio da permanência impõe a continuidade no serviço; o da generalidade impõe serviço igual para todos; o da eficiência exige a atualização do serviço; o da modicidade exige tarifas razoáveis; e o da cortesia traduz-se em bom tratamento para com o público. Faltando qualquer desses requisitos em um Serviço Público ou de utilidade pública, é dever da Administração intervir para restabelecer seu regular funcionamento ou retomar a sua prestação” – Grifo Nosso. 

Importantíssimo ainda é abrirmos um parêntese, e enfatizar que tais princípios devem estar presentes em todo e qualquer serviço público prestado ao cidadão.

Ora, como o próprio nome já diz, os concessionários de Serviços Públicos ou de utilidade pública têm como fim precípuo servir o público, sendo, portanto, inadmissível que os serviços sejam prestados de forma dissiduosa, visando apenas o lucro gerado pela tarifa cobrada dos usuários.

Dessa forma, inconcebível, no transporte coletivo, estarem até os corredores dos veículos lotados, fazendo com que, muitas vezes, trabalhadores se atrasem e coloquem em risco os empregos que os sustentam por não conseguir sequer entrar no ônibus.

É de se exigir do Poder Público que use de suas prerrogativas típicas dos contratos administrativos, como o é o de concessão, e fazer com que os concessionários/permissionários prestem um serviço de qualidade ou, então, revogar a delegação por interesse público, inclusive encampando o serviço, se necessário.

Nesse sentido, Helly Lopes Meireles ensina que “é dever do concedente exigir sua prestação em caráter geral, permanente, regular, eficiente e com tarifas módicas”, salientando que “no poder de fiscalização está implícito o de intervenção para regular o serviço quando estiver sendo prestado deficientemente aos usuários” (Direito Administrativo Brasileiro, 2002, p. 373).

A Lei dá, ainda, a possibilidade para os próprios cidadãos exercerem este direito de fiscalização, pois “aquele a quem for negado o serviço adequado (art. 7º, I) ou que sofrer-lhe a interrupção pode, judicialmente, exigir em seu favor o cumprimento da obrigação do concessionário inadimplente, exercitando um direito subjetivo próprio” (MELLO, Celso A. B., in CURSO DE DIRETO ADMINISTRATIVO, Ed. Malheiros, 2000, p. 638). Grifo Nosso.

Contudo, há de se ter em vista que os usuários do transporte coletivo urbano são, em sua maioria, pessoas sem recursos financeiros e, em geral, de baixa escolaridade, que sequer imaginam estar fazendo uso de um Serviço Público delegado e que podem recorrer ao Poder Judiciário para vê-lo prestado de forma eficiente.

Com efeito, não é crível que tais cidadãos vão, efetivamente, exercer tal direito trazido pela lei, não podendo, em face deste dispositivo legal, a Administração deixar o ônus da fiscalização ao administrado.

Sublinhe-se, por derradeiro, que a necessidade de o Poder Executivo agir de forma responsável na fiscalização das concessões de transporte coletivo, bem como verificar se as condições estabelecidas no contrato estão sendo cumpridas pelo concessionário, decorre de lei, fazendo-se imperioso, portanto, que este tome as medidas cabíveis para a efetiva defesa dos interesses da coletividade, consoante determinam os Princípios da Legalidade e da Supremacia do Interesse Público, que regem a Administração Pública de um modo geral.

Dessa forma, os cidadãos possuem o direito à qualidade do transporte coletivo, não devendo se submeter às verdadeiras torturas diárias dentro dos ônibus, causadas pela falta de fiscalização do Executivo Municipal. Devem, sim, exigir do Poder Público o cumprimento do disposto em nossa Constituição Cidadã de 1988 e que tome as medidas necessárias para a efetiva defesa dos interesses dos administrados.

É verdade que no atual contexto de mobilidade, não é fácil prestar um serviço de transportes excelentes. Por exemplo, quando o ônibus não recebe prioridade no espaço urbano, por corredores do tipo BRT, é difícil cumprir horários, já que os ônibus ficam presos no congestionamento, junto com outros carros que proporcionalmente ocupam muito mais espaço e transportam muito menos pessoas.

Não é fácil também manter uma manutenção adequada dos ônibus em vias que de tão esburacadas que são desafios até para blindados.

Mas, independentemente disso, as empresas de ônibus lucram, e lucram bastante. Há uma relação de consumo envolvida e o comprador do serviço, o passageiro, tem o direito de adquirir um serviço digno, previsto em lei.
Afinal, por mais difíceis que sejam os transportes coletivos de serem prestados, pergunte se o empresário, em sua maioria, quer deixá-lo para vender cocos numa barraca de praia.

É Constitucional. Mas como em outros serviços, nem sempre a Constituição é garantida!

O que deveria ser oferecido sem interferências e grandes reivindicações, muitas vezes é necessário que passageiros, entidades civis e entidades em prol da lei, como o Ministério Público, interfiram.

De acordo com o Ministério Público do Estado, “as humilhações sofridas pelos usuários por conta do descaso das empresas ferem a dignidade das pessoas, já que o transporte coletivo municipal é o único meio de transporte utilizado por inúmeros cidadãos.”

O grande problema é Ministério Público e associações terem de se mobilizar ainda mais, não para garantir algo novo, mas o cumprimento do que é previsto há muito tempo em lei. E que no fundo, nem precisaria constar num papel, afinal, quem compra um serviço tem o direito do melhor e acima de tudo, o ser humano deve ser tratado com respeito, o que não ocorre em boa parte dos serviços públicos.

Dr. Manoel Roma – Advogado

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